A história do Aizu Muso Ryu – Misawa Ha no Brasil.
O Aizu Muso Ryu – Misawa Ha (会津夢想流 – 三澤派) é um estilo marcial tradicional de origem Samurai que inclui várias disciplinas, interligando em seu treinamento combate armado e desarmado. Sua vivência e prática busca sempre preservar os costumes e valores morais destes antigos guerreiros, sempre com o objetivo de perpetuar sua cultura e filosofia.
Mais do que um simples conjunto de técnicas marciais, o Aizu Ryu é uma corrente viva de conhecimento, um caminho marcial que se ergue sobre os alicerces da tradição samurai. Sua prática é uma tecelagem sagrada entre o combate armado e desarmado, onde a espada e as mãos vazias não se opõem, mas dançam em uníssono, refletindo a unidade indissociável entre o corpo, o espírito e a vontade. Esta não é uma arte de guerra pela guerra, mas uma disciplina forjadora do caráter, um espaço de experiência e vivência onde os costumes e os valores morais dos antigos guerreiros tais como a honra, a lealdade e a compaixão são cultivadas com devoção. Seu propósito transcendente é ser um farol, perpetuando no ritmo fugaz do presente a cultura e a filosofia imemorial desses guardiões do Japão ancestral.
O próprio nome, Aizu Ryu, é um tributo gravado na memória do tempo. É um suspiro de respeito pelos guerreiros da região shogunal de Aizu. Cada técnica, cada movimento, carrega consigo o eco da fidelidade inquebrantável e do espírito indômito daqueles que, entre as montanhas e vales daquela terra, viveram e morreram por um código de conduta superior. É a herança de um legado que se recusa a ser esquecido.
Esta semente da tradição cruzou oceanos e encontrou solo fértil em terras brasileiras pelas mãos de Noriyoshi Misawa. Como um mestre transportando um patrimônio imaterial, ele trouxe consigo, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, não apenas um método de luta, mas um legado espiritual. Estabelecido no novo mundo, o estilo enraizou-se, transformando-se em uma ponte entre o Japão ancestral e o vigor multicultural do Brasil, demonstrando que a busca pela excelência humana é universal.
Os Misawa, responsáveis pela difusão do Aizu Musō Ryū além dos círculos familiares, chegaram ao Brasil em três ondas migratórias. Segundo registros do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, os primeiros membros da família aportaram no país a bordo do Ryojun-Maru (旅順丸) em 1910 e do Wakasu-Maru (若須丸) em 1914. Essas embarcações foram algumas das responsáveis pelo transporte de imigrantes japoneses para trabalhar nas lavouras de café, embora alguns passageiros fossem artesãos, comerciantes e mesmo antigos samurais que buscavam reconstruir suas vidas.
A última leva de imigração dos Misawa ocorreu em 1955, já em um momento de maior estabilidade das relações diplomáticas entre Brasil e Japão, após a Segunda Guerra Mundial. Esse período marcou uma nova fase da imigração japonesa, quando muitas famílias que já estavam estabelecidas no Brasil passaram a se dedicar à manutenção de suas tradições culturais, incluindo as artes marciais. A fixação dessas famílias no interior paulista não apenas possibilitou a transmissão do Aizu Musō Ryū às gerações seguintes, mas também contribuiu para a preservação de um legado histórico que remonta aos tempos dos samurais da região de Aizu. A prática marcial, antes restrita a círculos familiares, gradualmente encontrou espaço entre a comunidade nipo-brasileira, fortalecendo laços identitários e proporcionando um meio de resistência cultural diante do processo de assimilação.
Devido aos turbulentos anos do Estado Novo e aos conflitos entre os 勝ち組 (Kachigumi) e os 負け組 (Makegumi), as famílias Misawa, Yamada e Sani dedicaram-se estritamente ao trabalho no campo. As artes que traziam consigo foram preservadas apenas entre os próprios familiares, garantindo a continuidade do patrimônio imaterial com o qual se identificavam e que haviam protegido por séculos. Assim, nos intervalos do trabalho rural, buscavam praticar e vivenciar entre si um conjunto de técnicas de combate corporal (逮捕術 - Taihojutsu) e armado (古武術 - Kobujutsu), além de um repertório de costumes sintetizados em um modus vivendi característico da região montanhosa do norte do Japão.
A partir da década de 1960, com o arrefecimento dos conflitos intracoloniais e a mudança na percepção da opinião pública brasileira em relação à comunidade japonesa, os Misawa, aos poucos, passaram a se abrir para a sociedade em geral no que dizia respeito à transmissão de suas artes marciais e culturais. Essa abertura, no entanto, envolvia uma questão delicada dentro da colônia, especialmente entre aqueles que vinham de uma tradição Koryū (古流), isto é, escolas clássicas de artes marciais. O principal dilema era: deveriam os brasileiros ter acesso a um conhecimento ancestral tão cuidadosamente preservado?
Naturalmente, a proposta de ensinar não-japoneses encontrou resistência entre os colonos. As artes marciais, transmitidas por gerações dentro das comunidades nipônicas, não eram vistas apenas como práticas físicas, mas também como parte de um legado histórico e espiritual. Além disso, em um passado recente, essas mesmas artes haviam sido empregadas na resistência contra milícias ultranacionalistas, como a Shindō Renmei (振動連盟), no violento conflito que opôs os Kachigumi e os Makegumi dentro da colônia japonesa no Brasil.
Após a Segunda Guerra Mundial, a divisão entre os que acreditavam na vitória do Japão (kachigumi) e aqueles que reconheciam sua derrota (makegumi) gerou episódios de perseguição e violência. Durante esse período, a posse e prática de determinadas artes marciais foram vistas com desconfiança pelas autoridades brasileiras, que temiam a formação de novas milícias. Assim, qualquer iniciativa de transmissão desses conhecimentos fora do círculo restrito dos imigrantes era encarada com cautela, tanto pelas famílias japonesas quanto pelo governo.
Contudo, a maior controvérsia não era apenas política, mas também cultural. Para muitos, a simples ideia de um gaijin (外人) - termo usado para se referir a não-japoneses, geralmente em caráter pejorativo - tendo acesso a ensinamentos considerados sagrados era inaceitável. Alguns acreditavam que os brasileiros não possuíam a disciplina necessária para compreender e preservar a essência dessas tradições. Outros, ainda que menos radicais, temiam que a transmissão inadequada das técnicas levasse à sua distorção ou banalização. Esse receio não era infundado, pois a história já havia mostrado que práticas culturais deslocadas de seu contexto original muitas vezes eram apropriadas e ressignificadas de maneiras inesperadas.
Com o passar dos anos, os conflitos dentro da comunidade japonesa foram se dissipando. Embora algumas rivalidades familiares persistissem sob a forma de vinganças familiares (敵討 - kataki-uchi), a relação entre os imigrantes e a sociedade brasileira tornou-se gradativamente mais harmoniosa. O processo de assimilação dos japoneses na cultura urbana brasileira intensificou-se, e a resistência à integração foi dando lugar a novas oportunidades de intercâmbio cultural.
Outro fator relevante para essa mudança foi a diáspora interna da comunidade nipônica, impulsionada por fatores econômicos e sociais. Muitos colonos que antes estavam concentrados no interior paulista passaram a buscar novas oportunidades no Sul e Centro-Oeste do país, seja por questões econômicas ou pela necessidade de se afastar de antigas tensões. Foi nesse contexto que, entre o final da década de 1950 e início dos anos 1960, as famílias Misawa e Sani expandiram seus horizontes para além do eixo paulista.
Ambas as famílias, oriundas da antiga Aizu Wakamatsu, tinham laços matrimoniais entre si e já haviam sido pioneiras no ensino de suas artes a descendentes e amigos dentro da colônia japonesa em São Paulo. No entanto, a mudança de um desses casais para Londrina-PR marcou um novo capítulo na difusão do Aizu Musō Ryu. Fora do ambiente ainda tenso das relações sociais em São Paulo, a transmissão desse conhecimento encontrou menos resistência e pôde ocorrer de forma mais aberta e estruturada.
A trajetória dessas famílias não apenas garantiu a continuidade de uma tradição centenária, mas também contribuiu para a formação de um novo cenário no qual as artes marciais japonesas começaram a ser praticadas e valorizadas fora do restrito círculo da imigração, ganhando espaço na cultura marcial brasileira. Assim, o Aizu Musō Ryū foi deixando de ser um conhecimento exclusivo dos descendentes japoneses para se tornar parte de um patrimônio cultural compartilhado, embora sempre com o respeito e os rigores de sua transmissão tradicional.
Foi em meados da década de 1970 que a família Martins teve seu primeiro contato com os Misawa, durante um evento regional de artes marciais. Esse encontro se daria em um período de crescente interesse pelos estilos tradicionais japoneses no Brasil, em um contexto onde a cultura marcial nipônica começava a se difundir para além das colônias de imigrantes.
Dentre os participantes, destacavam-se o jovem goiano Lázaro Martins, que à época era praticante de Karate Shōrin-ryū (空手小林流), e o mestre Noriyoshi Misawa, um dos principais guardiões da tradição do Aizu Musō Ryū no Brasil. O encontro entre ambos logo evoluiu para uma amizade baseada no respeito mútuo e no interesse compartilhado pelo legado das artes marciais japonesas.
Reconhecendo a seriedade e a dedicação de Lázaro, os Misawa abriram as portas de seu Dōjō doméstico em Londrina-PR, onde passaram a transmitir-lhe ensinamentos que iam além das técnicas de combate – abrangendo também aspectos filosóficos, disciplinares e culturais das artes samurais. Não demorou para que essa transmissão se estendesse ao filho de Lázaro, Lamarso Martins, que na infância começou a acompanhar os treinos ao lado do pai. Esse período foi crucial na formação do jovem, que anos mais tarde receberia um nome marcial dentro da tradição: Kenjirō (賢次郎).
Após anos de aprendizado intenso sob a tutela dos Misawa, Lázaro Martins retornou a Goiânia, já não apenas como um discípulo, mas como um legítimo representante da linhagem. Foi nesse contexto que ele recebeu seu nome samurai (Budōka Namae - 武道家名前), sendo reconhecido como Masato (正人), um título que simbolizava sua maturidade e comprometimento com o caminho marcial.
Com sua mudança, Lázaro Masato confiou à família Misawa um dos aspectos mais importantes de sua jornada: a educação e o treinamento contínuo de seu filho Kenjirō, agora um adolescente, podendo dar sequência a sua formação marcial até a idade adulta, consolidando-se como um dos sucessores dessa tradição no Brasil.
Esse momento marcou não apenas a transmissão de conhecimentos técnicos, mas também o fortalecimento de um laço intergeracional dentro do Aizu Musō Ryū, onde valores como lealdade, respeito e disciplina se mantiveram como pilares essenciais da prática. A relação entre os Martins e os Misawa transcendeu o ensino de combate, tornando-se um verdadeiro exemplo da profunda conexão espiritual e cultural que as artes marciais tradicionais são capazes de criar.
Décadas após o início de seu treinamento, Kenjirō, já altamente graduado dentro do sistema de preservação familiar do Aizu Musō Ryū, retornou a Goiás em meados da década de 1990. Conciliando a prática marcial com sua carreira profissional na esfera militar, ele tomou para si a missão de transmitir os ensinamentos que recebera dos Misawa, iniciando o treinamento de seus familiares mais próximos. Essa decisão estava alinhada às recomendações de seu mestre, feitas no contexto de sua última graduação dentro da tradição.
O primeiro discípulo desse novo ciclo foi seu afilhado, Clériston Gomes Valadão, que mais tarde se tornaria conhecido no meio marcial pelo seu budoka namae, Goeihashi (護衛橋). Nos primeiros anos, o treinamento ainda acontecia de maneira restrita, sendo realizado em ambientes domésticos ou em espaços alugados, como Dōjōs e academias da capital. A prática ainda era permeada pelo tradicionalismo herdado dos tempos em que o conhecimento era transmitido exclusivamente dentro do seio familiar ou em pequenos círculos seletos.
Os anos 2000 marcaram um momento decisivo para a história do estilo. Foi nesse período que Kenjirō, assumindo sua condição de Sensei (先生), tomou uma decisão delicada e de grande repercussão dentro da linhagem: fundar uma escola oficial para a transmissão pública do estilo. Essa iniciativa representava uma ruptura em relação ao passado, pois até então a tradição havia sido ensinada de maneira privada, restrita a círculos familiares ou a discípulos cuidadosamente selecionados. A proposta de estruturar o ensino de forma pública e adaptada aos tempos modernos trouxe consigo desafios que iam além da simples transmissão técnica: implicava uma profunda reflexão sobre como preservar a essência filosófica e marcial do estilo diante de um novo modelo de ensino.
Diferente de debates anteriores sobre a "questão Gaijin", um preconceito já superado pelos próprios Misawa décadas antes, a preocupação central agora era como preservar a integridade técnica e filosófica do estilo diante das mudanças didático-pedagógicas necessárias para torná-lo acessível a novos praticantes. O dilema era claro: seria possível ensinar uma arte marcial secular para um público que não compartilha do "modo de vida japonês" – o espírito do Yamatodamashi (大和魂, "alma do Japão”)?
Além disso, surgia outro desafio: como sistematizar um conhecimento que sempre fora transmitido de maneira orgânica e quase ritualística? Seria necessário encontrar um equilíbrio entre preservação e adaptação, garantindo que a tradição não se tornasse um mero espetáculo esportivo ou perdesse suas camadas mais profundas de significado.
Kenjirō Misawa, ciente da responsabilidade que sua graduação e posição dentro da linhagem lhe conferiam, decidiu seguir adiante, compreendendo que o crescimento da arte exigiria diálogo, planejamento e uma nova abordagem pedagógica. A fundação de uma escola formal não foi um processo simples ou imediato, mas sim um período de gestação, marcado por longas discussões, estratégias de divulgação e um cuidadoso trabalho de sistematização do conhecimento.
A nova estruturação pedagógica do estilo trouxe desafios, mas também oportunidades. Com os anos, a escola se consolidou, permitindo que novos discípulos tivessem acesso ao legado histórico e técnico da tradição, sem que isso significasse sua descaracterização. Essa transição – da transmissão privada para o ensino público – representa um marco na história da linhagem, sendo um exemplo do delicado equilíbrio entre tradição e modernidade no contexto das artes marciais japonesas. O impacto desse processo continua a reverberar até os dias de hoje, demonstrando que a preservação de uma tradição secular não depende apenas da rigidez dogmática, mas também da capacidade de adaptação inteligente e respeitosa aos novos tempos.
Entre os anos de 2000 e 2005, uma série de eventos contribuiu para a consolidação da prática do Aizu Ryū (会津流) no estado de Goiás. Durante esse período o primeiro exame formal da escola é realizado. Os primeiros alunos do “sistema aberto" avançaram para condição de Seito (生徒). Esse momento foi decisivo, pois estabeleceu o primeiro sistema estruturado de graduação dentro da escola.
Ainda em novembro de 2005, iniciou-se a construção da sede central, um Dōjō (projetado para acomodar um número maior de praticantes. Os primeiros alunos a serem admitidos foram, em grande parte, familiares e amigos indicados pelos primeiros alunos, o que manteve, em certo grau, a tradição de transmissão dentro de círculos de confiança.
O ano de 2004 foi um marco fundamental na trajetória de Kenjirō Sensei-Sama. Diretamente de seus mestres - Hidetoshi Sani, Shinaiako e Noriyoshi Misawa - recebe o grau de Okuden (奥伝), uma das mais altas condecorações dentro de um Koryū. Essa graduação representava não apenas um avanço técnico, mas a confirmação de sua legitimidade como herdeiro do estilo e seu direito de expandi-lo conforme necessário.
A partir de 2006, o Aizu Honbu Gakkō (会津本部学校), agora reconhecido como a escola central do Aizu Musō Ryū – Misawa-ha, passou a receber um número crescente de interessados na arte. Esse aumento da visibilidade foi impulsionado, em grande parte, pela exposição virtual, que atraiu desde curiosos até praticantes experientes desejando averiguar a autenticidade da tradição.
Dessa fase inicial de abertura, dois contatos foram particularmente significativos para a projeção da escola. Primeiro, o convite da Comissão Organizadora das festividades do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil (2008), que reconheceu a importância histórica da linhagem e a autenticidade de seus ensinamentos. Em segundo, o contato com a organização internacional sediada no Japão, a All Budo Japan Federation (全日本総合武道連盟 - Zen Nihon Sōgō Budō Renmei), que abriria portas para o reconhecimento da escola dentro dos círculos marciais tradicionais japoneses.
A filiação foi um marco essencial na legitimação do Aizu Musō Ryū – Misawa-ha como uma linhagem autêntica de Bujutsu (武術, "artes marciais tradicionais”). Atualmente, o Aizu Musō Ryū – Misawa-Ha é oficialmente reconhecido e filiado à Zen Nihon Sōgō Budō Renmei, conhecida no ocidente como All Japan Budo Federation. Dentro dessa organização, Kenjirō Sensei ocupa o posto de representante oficial para a América Latina e detendo o título de Renshi 6º Dan (錬士六段, "mestre polido, 6º grau”). Além desse reconhecimento, ele também foi designado como representante oficial no Brasil do estilo Toyama Ryū – Morinaga-ha (戸山流森永派), um dos estilos clássicos de Iaidō (居合道, "a arte do desembainhar e cortar em um único movimento").
A Soburen (総武連), sigla pela qual a organização é amplamente conhecida, tem sua sede na Nippon Seibukan Dōjō (日本誠武館道場), um dos principais centros de estudo e preservação das artes marciais tradicionais japonesas. Fundado em 1952 por Suzuki Masafumi Kanchō (鈴木正文館長), a instituição é hoje um pilar na manutenção e divulgação das linhagens tanto de Nihon Koryū Bujutsu (日本古流武術, "artes marciais tradicionais do Japão") quanto de Nihon Gendai Budō (日本現代武道 - "artes marciais modernas do Japão"). A diferenciação entre esses dois ramos é essencial: enquanto os Koryū Bujutsu representam sistemas de combate pré-Restauração Meiji (1868), ligados a clãs samurais e a contextos bélicos históricos, os Gendai Budō surgiram no período moderno e pós-moderno, incorporando uma estrutura pedagógica mais acessível e um foco maior no desenvolvimento pessoal e na prática esportiva.
Além de ser o representante da Soburen no Brasil, Kenjirō Sensei tem a responsabilidade de preservar e difundir o Toyama Ryū – Morinaga-ha, consolidando sua linhagem no país. Seu trabalho não se limita à transmissão técnica, mas também à manutenção dos valores, da ética e do espírito das artes marciais japonesas, garantindo que esse patrimônio cultural continue vivo e relevante para as gerações futuras.
A partir de 2018 é impossível não sentir gratidão pelos momentos vividos e pelas conquistas alcançadas no contínuo processo de expansão e consolidação do Aizu Muso Ryū no Brasil. Esse período foi marcado por eventos históricos, reconhecimentos formais e pelo fortalecimento da tradição dentro e fora dos limites de Goiás.
Um dos marcos desse ano foi a participação no 7° Festival do Japão em Brasília, inserido no Circuito de Eventos em comemoração aos 110 Anos da Imigração Japonesa no Brasil. O evento, que reuniu entusiastas e praticantes das artes marciais nipônicas, contou com a ilustre presença do Embaixador do Japão no Brasil, Sr. Akira Yamada. Essa foi uma oportunidade inestimável para apresentar o legado técnico e filosófico do estilo a um público mais amplo, reafirmando a relevância da linhagem dentro do cenário marcial contemporâneo.
Outro momento de grande relevância foi a celebração dos 62 anos de ensino do Aizu Ryū no Brasil e dos 20 anos de ensino em Goiânia. A festividade foi um verdadeiro tributo à cultura nipônica, englobando demonstrações de artes marciais, exposições fotográficas, apresentações culturais, exibição do acervo de armas da escola e a presença de escolas irmãs. O evento proporcionou aos participantes a experiência de um intercâmbio técnico e cultural, fortalecendo os laços entre as diversas vertentes do Budō no Brasil. Além disso, o Aizu Ryū esteve presente no Enbu Rensei Tai Kai, um dos eventos mais prestigiados no contexto das artes marciais tradicionais japonesas, organizado pela Kokusai Nihon Bujutsu Kenshūsho Sō Honbu. Esse evento foi um espaço de troca entre escolas tradicionais, reafirmando o compromisso do Aizu Ryū - Misawa-ha com a excelência técnica e a preservação da herança marcial japonesa.
Outro momento de suma importância para a linhagem foi a autorização de transmissão (Jūkō Shōmei no Kan – 巻講証明之巻) do Mondo Ryū Heiho.
Esse estilo, estabelecido no final do século XV, teve sua legitimidade reconhecida e concedida pelas mãos de Daijūgo (第十五家第十五) - Sōke Yokoyama Masashi ao mestre Kenjirō Misawa. Esse reconhecimento reforça a posição do Aizu Ryū dentro do universo dos Koryū Bujutsu e legitima a continuidade de sua transmissão em solo brasileiro.
Em dezembro de 2018, tivemos a honra de receber os mestres Marcelo Haafeld e Adriano Pereira, do Shintō Ryū Tsukimoto-ha, para a realização do 2° Seminário de Kenbu e Shibu. Esse evento consolidou o intercâmbio entre tradições marciais e possibilitou o aprofundamento nas respectivas artes, trazendo aos participantes uma nova dimensão do treinamento marcial e sua conexão com a cultura clássica japonesa.
Nos anos seguintes, o Aizu Ryū seguiu seu curso de crescimento e afirmação no cenário das artes marciais tradicionais. Um dos momentos mais significativos foi o exame de graduação de Alex Katsu Sapiência (勝), cujo desempenho exemplar o levou a receber não só o grau de Chūden (中伝), como a respectiva licença parcial de ensino Menkyo (免許) no anos seguintes: um marco de reconhecimento técnico e filosófico dentro da hierarquia da escola, sendo o primeiro aluno a se graduar fora do regime estritamente familiar e dentro da metodologia de transmissão desenvolvida por Kenjiro Sensei-Sama.
Com a crescente adesão de novos praticantes e a necessidade de expandir os locais de ensino, foram fundados três novos Shibu Gakkō (支部学校) nas cidades goianas de Rio Verde, Anápolis e na região norte de Goiânia. Essas unidades passaram a desempenhar um papel crucial na disseminação do estilo, tornando-o acessível a um número maior de interessados e garantindo a continuidade do treinamento dentro dos padrões estabelecidos pela linhagem Misawa-ha.
O ano de 2024 o Aizu Honbu Gakko sediou exposição “Ichi-go Ichi-e: Entre a Tela e a Espada”. Inspirado na tradição do Chanoyu (茶の湯) e na prática do Aizu Ryū, o projeto do artista visual Rafael Seyki Abdala combinou pintura, instalação e performance, onde gestos marciais e expressões artísticas se entrelaçaram. Sob a supervisão técnica do estilo, foram desenvolvidos estudos e experimentações que uniram técnicas tradicionais e contemporâneas. O resultado pôde ser apreciado em telas imersivas, criadas por cortes de Nihontō (日本刀), cada um carregando força, ângulo e intenção irrepetíveis. Além da exposição, o Aizu Honbu Gakkō ofereceu oficinas para que o público vivenciasse essa filosofia na prática. Mais do que uma mostra de arte, o evento convidou à reflexão sobre a singularidade de cada instante, tornando cada interação uma experiência única e transformadora.
Por fim, no ano de 2025 tivemos um dos momentos mais significativos de nossa história recente: além do exame de graduação de novos Chuden – que agora se preparam para os ciclos subsequentes para a condição de instrutores – o Sensei Cleriston Goeihashi Valadão se gradua Okuden. É o primeiro mestre de Aizu Muso Ryu a se graduar fora de uma transmissão diretamente nipônica, sendo instruído inteiramente por Kenjiro Misawa Sensei-Sama – que a seu turno se eleva agora à condição plena de Meikyo Kaiden (equivalente a Grão-Mestre).
Olhando para o presente, fica evidente que o Aizu Muso Ryu se consolidou não apenas como uma escola de artes marciais, mas como um centro de estudo e preservação de uma tradição secular. Com o compromisso de seus praticantes e o esforço contínuo de seus mestres, a arte segue viva, crescendo e se fortalecendo para as futuras gerações. A transmissão do estilo, ainda que adaptada didática e pedagogicamente aos tempos atuais, preserva com rigor o legado dos antigos samurais da região de Aizu. Sua fidelidade técnica mantém sua identidade como um verdadeiro estilo tradicional, respeitando os ensinamentos e a essência marcial transmitida ao longo das gerações.
Kenjirō Sensei-Sama acolhe com entusiasmo todos aqueles que se interessam pela riqueza e integridade da cultura samurai. Por meio da transmissão diária e da vivência dos princípios de um Koyu Bujutsu, o estilo se mantém vivo na tradição desses guerreiros, trazendo para o presente os valores de humildade, honra e lealdade que os caracterizaram.
A trajetória do Aizu Musō Ryū – Misawa-ha no Brasil reflete os desafios e as conquistas de uma tradição marcial ao ser transplantada para um novo contexto cultural. O equilíbrio entre preservação e adaptação sempre foi um dilema essencial às artes marciais japonesas, e a jornada de Kenjirō Sensei-Sama demonstra que é possível honrar o passado enquanto se constrói um futuro. O reconhecimento internacional da escola e sua crescente influência na América Latina reafirmam a vitalidade do Aizu Musō Ryū. Seu legado permanece sólido, conectando gerações e garantindo que os ensinamentos dos antigos samurais continuem a inspirar e a moldar novos praticantes no caminho do guerreiro.
A transmissão deste saber é um ato de preservação e renovação. Realiza-se de forma dinâmica e segura, mas sem jamais ceder à tentação do efêmero. É um diálogo silencioso entre gerações, onde o conhecimento milenar é passado adiante não como um fóssil inerte, mas como uma semente viva. O objetivo último é zelar por esse legado intangível com a mesma disciplina e o mesmo rigor que moldavam os treinamentos dos antigos samurais. É um resgate consciente, um ato de resistência cultural que busca, nas dobras do gesto preciso e na postura correta, reacender a chama de uma tradição. Dessa forma, a escola não apenas honra o passado, mas cumpre seu dever sagrado de levar esses valores atemporais à comunidade, oferecendo um porto de serenidade, foco e integridade em um mundo de incertezas. É o espírito do guerreiro renascendo, não para a batalha, mas para a edificação de uma vida mais significativa.
Diego Komori Moraes ( 古守博士 )
Historiador, Filósofo e Psicanalista. Doutor (Ph.D) em História da imigração japonesa no Brasil (PPGH - UFG) com a tese intitulada “O Martírio no Sol Poente: das agruras (e)(i)migratórias à formação de milícias ultranacionalistas no contexto do pós-guerra no Brasil – o caso Shindo-Renmei (1868 – 1956)”.
Mais do que um simples conjunto de técnicas marciais, o Aizu Ryu é uma corrente viva de conhecimento, um caminho marcial que se ergue sobre os alicerces da tradição samurai. Sua prática é uma tecelagem sagrada entre o combate armado e desarmado, onde a espada e as mãos vazias não se opõem, mas dançam em uníssono, refletindo a unidade indissociável entre o corpo, o espírito e a vontade. Esta não é uma arte de guerra pela guerra, mas uma disciplina forjadora do caráter, um espaço de experiência e vivência onde os costumes e os valores morais dos antigos guerreiros tais como a honra, a lealdade e a compaixão são cultivadas com devoção. Seu propósito transcendente é ser um farol, perpetuando no ritmo fugaz do presente a cultura e a filosofia imemorial desses guardiões do Japão ancestral.
O próprio nome, Aizu Ryu, é um tributo gravado na memória do tempo. É um suspiro de respeito pelos guerreiros da região shogunal de Aizu. Cada técnica, cada movimento, carrega consigo o eco da fidelidade inquebrantável e do espírito indômito daqueles que, entre as montanhas e vales daquela terra, viveram e morreram por um código de conduta superior. É a herança de um legado que se recusa a ser esquecido.
Esta semente da tradição cruzou oceanos e encontrou solo fértil em terras brasileiras pelas mãos de Noriyoshi Misawa. Como um mestre transportando um patrimônio imaterial, ele trouxe consigo, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, não apenas um método de luta, mas um legado espiritual. Estabelecido no novo mundo, o estilo enraizou-se, transformando-se em uma ponte entre o Japão ancestral e o vigor multicultural do Brasil, demonstrando que a busca pela excelência humana é universal.
Os Misawa, responsáveis pela difusão do Aizu Musō Ryū além dos círculos familiares, chegaram ao Brasil em três ondas migratórias. Segundo registros do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, os primeiros membros da família aportaram no país a bordo do Ryojun-Maru (旅順丸) em 1910 e do Wakasu-Maru (若須丸) em 1914. Essas embarcações foram algumas das responsáveis pelo transporte de imigrantes japoneses para trabalhar nas lavouras de café, embora alguns passageiros fossem artesãos, comerciantes e mesmo antigos samurais que buscavam reconstruir suas vidas.
A última leva de imigração dos Misawa ocorreu em 1955, já em um momento de maior estabilidade das relações diplomáticas entre Brasil e Japão, após a Segunda Guerra Mundial. Esse período marcou uma nova fase da imigração japonesa, quando muitas famílias que já estavam estabelecidas no Brasil passaram a se dedicar à manutenção de suas tradições culturais, incluindo as artes marciais. A fixação dessas famílias no interior paulista não apenas possibilitou a transmissão do Aizu Musō Ryū às gerações seguintes, mas também contribuiu para a preservação de um legado histórico que remonta aos tempos dos samurais da região de Aizu. A prática marcial, antes restrita a círculos familiares, gradualmente encontrou espaço entre a comunidade nipo-brasileira, fortalecendo laços identitários e proporcionando um meio de resistência cultural diante do processo de assimilação.
Devido aos turbulentos anos do Estado Novo e aos conflitos entre os 勝ち組 (Kachigumi) e os 負け組 (Makegumi), as famílias Misawa, Yamada e Sani dedicaram-se estritamente ao trabalho no campo. As artes que traziam consigo foram preservadas apenas entre os próprios familiares, garantindo a continuidade do patrimônio imaterial com o qual se identificavam e que haviam protegido por séculos. Assim, nos intervalos do trabalho rural, buscavam praticar e vivenciar entre si um conjunto de técnicas de combate corporal (逮捕術 - Taihojutsu) e armado (古武術 - Kobujutsu), além de um repertório de costumes sintetizados em um modus vivendi característico da região montanhosa do norte do Japão.
A partir da década de 1960, com o arrefecimento dos conflitos intracoloniais e a mudança na percepção da opinião pública brasileira em relação à comunidade japonesa, os Misawa, aos poucos, passaram a se abrir para a sociedade em geral no que dizia respeito à transmissão de suas artes marciais e culturais. Essa abertura, no entanto, envolvia uma questão delicada dentro da colônia, especialmente entre aqueles que vinham de uma tradição Koryū (古流), isto é, escolas clássicas de artes marciais. O principal dilema era: deveriam os brasileiros ter acesso a um conhecimento ancestral tão cuidadosamente preservado?
Naturalmente, a proposta de ensinar não-japoneses encontrou resistência entre os colonos. As artes marciais, transmitidas por gerações dentro das comunidades nipônicas, não eram vistas apenas como práticas físicas, mas também como parte de um legado histórico e espiritual. Além disso, em um passado recente, essas mesmas artes haviam sido empregadas na resistência contra milícias ultranacionalistas, como a Shindō Renmei (振動連盟), no violento conflito que opôs os Kachigumi e os Makegumi dentro da colônia japonesa no Brasil.
Após a Segunda Guerra Mundial, a divisão entre os que acreditavam na vitória do Japão (kachigumi) e aqueles que reconheciam sua derrota (makegumi) gerou episódios de perseguição e violência. Durante esse período, a posse e prática de determinadas artes marciais foram vistas com desconfiança pelas autoridades brasileiras, que temiam a formação de novas milícias. Assim, qualquer iniciativa de transmissão desses conhecimentos fora do círculo restrito dos imigrantes era encarada com cautela, tanto pelas famílias japonesas quanto pelo governo.
Contudo, a maior controvérsia não era apenas política, mas também cultural. Para muitos, a simples ideia de um gaijin (外人) - termo usado para se referir a não-japoneses, geralmente em caráter pejorativo - tendo acesso a ensinamentos considerados sagrados era inaceitável. Alguns acreditavam que os brasileiros não possuíam a disciplina necessária para compreender e preservar a essência dessas tradições. Outros, ainda que menos radicais, temiam que a transmissão inadequada das técnicas levasse à sua distorção ou banalização. Esse receio não era infundado, pois a história já havia mostrado que práticas culturais deslocadas de seu contexto original muitas vezes eram apropriadas e ressignificadas de maneiras inesperadas.
Com o passar dos anos, os conflitos dentro da comunidade japonesa foram se dissipando. Embora algumas rivalidades familiares persistissem sob a forma de vinganças familiares (敵討 - kataki-uchi), a relação entre os imigrantes e a sociedade brasileira tornou-se gradativamente mais harmoniosa. O processo de assimilação dos japoneses na cultura urbana brasileira intensificou-se, e a resistência à integração foi dando lugar a novas oportunidades de intercâmbio cultural.
Outro fator relevante para essa mudança foi a diáspora interna da comunidade nipônica, impulsionada por fatores econômicos e sociais. Muitos colonos que antes estavam concentrados no interior paulista passaram a buscar novas oportunidades no Sul e Centro-Oeste do país, seja por questões econômicas ou pela necessidade de se afastar de antigas tensões. Foi nesse contexto que, entre o final da década de 1950 e início dos anos 1960, as famílias Misawa e Sani expandiram seus horizontes para além do eixo paulista.
Ambas as famílias, oriundas da antiga Aizu Wakamatsu, tinham laços matrimoniais entre si e já haviam sido pioneiras no ensino de suas artes a descendentes e amigos dentro da colônia japonesa em São Paulo. No entanto, a mudança de um desses casais para Londrina-PR marcou um novo capítulo na difusão do Aizu Musō Ryu. Fora do ambiente ainda tenso das relações sociais em São Paulo, a transmissão desse conhecimento encontrou menos resistência e pôde ocorrer de forma mais aberta e estruturada.
A trajetória dessas famílias não apenas garantiu a continuidade de uma tradição centenária, mas também contribuiu para a formação de um novo cenário no qual as artes marciais japonesas começaram a ser praticadas e valorizadas fora do restrito círculo da imigração, ganhando espaço na cultura marcial brasileira. Assim, o Aizu Musō Ryū foi deixando de ser um conhecimento exclusivo dos descendentes japoneses para se tornar parte de um patrimônio cultural compartilhado, embora sempre com o respeito e os rigores de sua transmissão tradicional.
Foi em meados da década de 1970 que a família Martins teve seu primeiro contato com os Misawa, durante um evento regional de artes marciais. Esse encontro se daria em um período de crescente interesse pelos estilos tradicionais japoneses no Brasil, em um contexto onde a cultura marcial nipônica começava a se difundir para além das colônias de imigrantes.
Dentre os participantes, destacavam-se o jovem goiano Lázaro Martins, que à época era praticante de Karate Shōrin-ryū (空手小林流), e o mestre Noriyoshi Misawa, um dos principais guardiões da tradição do Aizu Musō Ryū no Brasil. O encontro entre ambos logo evoluiu para uma amizade baseada no respeito mútuo e no interesse compartilhado pelo legado das artes marciais japonesas.
Reconhecendo a seriedade e a dedicação de Lázaro, os Misawa abriram as portas de seu Dōjō doméstico em Londrina-PR, onde passaram a transmitir-lhe ensinamentos que iam além das técnicas de combate – abrangendo também aspectos filosóficos, disciplinares e culturais das artes samurais. Não demorou para que essa transmissão se estendesse ao filho de Lázaro, Lamarso Martins, que na infância começou a acompanhar os treinos ao lado do pai. Esse período foi crucial na formação do jovem, que anos mais tarde receberia um nome marcial dentro da tradição: Kenjirō (賢次郎).
Após anos de aprendizado intenso sob a tutela dos Misawa, Lázaro Martins retornou a Goiânia, já não apenas como um discípulo, mas como um legítimo representante da linhagem. Foi nesse contexto que ele recebeu seu nome samurai (Budōka Namae - 武道家名前), sendo reconhecido como Masato (正人), um título que simbolizava sua maturidade e comprometimento com o caminho marcial.
Com sua mudança, Lázaro Masato confiou à família Misawa um dos aspectos mais importantes de sua jornada: a educação e o treinamento contínuo de seu filho Kenjirō, agora um adolescente, podendo dar sequência a sua formação marcial até a idade adulta, consolidando-se como um dos sucessores dessa tradição no Brasil.
Esse momento marcou não apenas a transmissão de conhecimentos técnicos, mas também o fortalecimento de um laço intergeracional dentro do Aizu Musō Ryū, onde valores como lealdade, respeito e disciplina se mantiveram como pilares essenciais da prática. A relação entre os Martins e os Misawa transcendeu o ensino de combate, tornando-se um verdadeiro exemplo da profunda conexão espiritual e cultural que as artes marciais tradicionais são capazes de criar.
Décadas após o início de seu treinamento, Kenjirō, já altamente graduado dentro do sistema de preservação familiar do Aizu Musō Ryū, retornou a Goiás em meados da década de 1990. Conciliando a prática marcial com sua carreira profissional na esfera militar, ele tomou para si a missão de transmitir os ensinamentos que recebera dos Misawa, iniciando o treinamento de seus familiares mais próximos. Essa decisão estava alinhada às recomendações de seu mestre, feitas no contexto de sua última graduação dentro da tradição.
O primeiro discípulo desse novo ciclo foi seu afilhado, Clériston Gomes Valadão, que mais tarde se tornaria conhecido no meio marcial pelo seu budoka namae, Goeihashi (護衛橋). Nos primeiros anos, o treinamento ainda acontecia de maneira restrita, sendo realizado em ambientes domésticos ou em espaços alugados, como Dōjōs e academias da capital. A prática ainda era permeada pelo tradicionalismo herdado dos tempos em que o conhecimento era transmitido exclusivamente dentro do seio familiar ou em pequenos círculos seletos.
Os anos 2000 marcaram um momento decisivo para a história do estilo. Foi nesse período que Kenjirō, assumindo sua condição de Sensei (先生), tomou uma decisão delicada e de grande repercussão dentro da linhagem: fundar uma escola oficial para a transmissão pública do estilo. Essa iniciativa representava uma ruptura em relação ao passado, pois até então a tradição havia sido ensinada de maneira privada, restrita a círculos familiares ou a discípulos cuidadosamente selecionados. A proposta de estruturar o ensino de forma pública e adaptada aos tempos modernos trouxe consigo desafios que iam além da simples transmissão técnica: implicava uma profunda reflexão sobre como preservar a essência filosófica e marcial do estilo diante de um novo modelo de ensino.
Diferente de debates anteriores sobre a "questão Gaijin", um preconceito já superado pelos próprios Misawa décadas antes, a preocupação central agora era como preservar a integridade técnica e filosófica do estilo diante das mudanças didático-pedagógicas necessárias para torná-lo acessível a novos praticantes. O dilema era claro: seria possível ensinar uma arte marcial secular para um público que não compartilha do "modo de vida japonês" – o espírito do Yamatodamashi (大和魂, "alma do Japão”)?
Além disso, surgia outro desafio: como sistematizar um conhecimento que sempre fora transmitido de maneira orgânica e quase ritualística? Seria necessário encontrar um equilíbrio entre preservação e adaptação, garantindo que a tradição não se tornasse um mero espetáculo esportivo ou perdesse suas camadas mais profundas de significado.
Kenjirō Misawa, ciente da responsabilidade que sua graduação e posição dentro da linhagem lhe conferiam, decidiu seguir adiante, compreendendo que o crescimento da arte exigiria diálogo, planejamento e uma nova abordagem pedagógica. A fundação de uma escola formal não foi um processo simples ou imediato, mas sim um período de gestação, marcado por longas discussões, estratégias de divulgação e um cuidadoso trabalho de sistematização do conhecimento.
A nova estruturação pedagógica do estilo trouxe desafios, mas também oportunidades. Com os anos, a escola se consolidou, permitindo que novos discípulos tivessem acesso ao legado histórico e técnico da tradição, sem que isso significasse sua descaracterização. Essa transição – da transmissão privada para o ensino público – representa um marco na história da linhagem, sendo um exemplo do delicado equilíbrio entre tradição e modernidade no contexto das artes marciais japonesas. O impacto desse processo continua a reverberar até os dias de hoje, demonstrando que a preservação de uma tradição secular não depende apenas da rigidez dogmática, mas também da capacidade de adaptação inteligente e respeitosa aos novos tempos.
Entre os anos de 2000 e 2005, uma série de eventos contribuiu para a consolidação da prática do Aizu Ryū (会津流) no estado de Goiás. Durante esse período o primeiro exame formal da escola é realizado. Os primeiros alunos do “sistema aberto" avançaram para condição de Seito (生徒). Esse momento foi decisivo, pois estabeleceu o primeiro sistema estruturado de graduação dentro da escola.
Ainda em novembro de 2005, iniciou-se a construção da sede central, um Dōjō (projetado para acomodar um número maior de praticantes. Os primeiros alunos a serem admitidos foram, em grande parte, familiares e amigos indicados pelos primeiros alunos, o que manteve, em certo grau, a tradição de transmissão dentro de círculos de confiança.
O ano de 2004 foi um marco fundamental na trajetória de Kenjirō Sensei-Sama. Diretamente de seus mestres - Hidetoshi Sani, Shinaiako e Noriyoshi Misawa - recebe o grau de Okuden (奥伝), uma das mais altas condecorações dentro de um Koryū. Essa graduação representava não apenas um avanço técnico, mas a confirmação de sua legitimidade como herdeiro do estilo e seu direito de expandi-lo conforme necessário.
A partir de 2006, o Aizu Honbu Gakkō (会津本部学校), agora reconhecido como a escola central do Aizu Musō Ryū – Misawa-ha, passou a receber um número crescente de interessados na arte. Esse aumento da visibilidade foi impulsionado, em grande parte, pela exposição virtual, que atraiu desde curiosos até praticantes experientes desejando averiguar a autenticidade da tradição.
Dessa fase inicial de abertura, dois contatos foram particularmente significativos para a projeção da escola. Primeiro, o convite da Comissão Organizadora das festividades do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil (2008), que reconheceu a importância histórica da linhagem e a autenticidade de seus ensinamentos. Em segundo, o contato com a organização internacional sediada no Japão, a All Budo Japan Federation (全日本総合武道連盟 - Zen Nihon Sōgō Budō Renmei), que abriria portas para o reconhecimento da escola dentro dos círculos marciais tradicionais japoneses.
A filiação foi um marco essencial na legitimação do Aizu Musō Ryū – Misawa-ha como uma linhagem autêntica de Bujutsu (武術, "artes marciais tradicionais”). Atualmente, o Aizu Musō Ryū – Misawa-Ha é oficialmente reconhecido e filiado à Zen Nihon Sōgō Budō Renmei, conhecida no ocidente como All Japan Budo Federation. Dentro dessa organização, Kenjirō Sensei ocupa o posto de representante oficial para a América Latina e detendo o título de Renshi 6º Dan (錬士六段, "mestre polido, 6º grau”). Além desse reconhecimento, ele também foi designado como representante oficial no Brasil do estilo Toyama Ryū – Morinaga-ha (戸山流森永派), um dos estilos clássicos de Iaidō (居合道, "a arte do desembainhar e cortar em um único movimento").
A Soburen (総武連), sigla pela qual a organização é amplamente conhecida, tem sua sede na Nippon Seibukan Dōjō (日本誠武館道場), um dos principais centros de estudo e preservação das artes marciais tradicionais japonesas. Fundado em 1952 por Suzuki Masafumi Kanchō (鈴木正文館長), a instituição é hoje um pilar na manutenção e divulgação das linhagens tanto de Nihon Koryū Bujutsu (日本古流武術, "artes marciais tradicionais do Japão") quanto de Nihon Gendai Budō (日本現代武道 - "artes marciais modernas do Japão"). A diferenciação entre esses dois ramos é essencial: enquanto os Koryū Bujutsu representam sistemas de combate pré-Restauração Meiji (1868), ligados a clãs samurais e a contextos bélicos históricos, os Gendai Budō surgiram no período moderno e pós-moderno, incorporando uma estrutura pedagógica mais acessível e um foco maior no desenvolvimento pessoal e na prática esportiva.
Além de ser o representante da Soburen no Brasil, Kenjirō Sensei tem a responsabilidade de preservar e difundir o Toyama Ryū – Morinaga-ha, consolidando sua linhagem no país. Seu trabalho não se limita à transmissão técnica, mas também à manutenção dos valores, da ética e do espírito das artes marciais japonesas, garantindo que esse patrimônio cultural continue vivo e relevante para as gerações futuras.
A partir de 2018 é impossível não sentir gratidão pelos momentos vividos e pelas conquistas alcançadas no contínuo processo de expansão e consolidação do Aizu Muso Ryū no Brasil. Esse período foi marcado por eventos históricos, reconhecimentos formais e pelo fortalecimento da tradição dentro e fora dos limites de Goiás.
Um dos marcos desse ano foi a participação no 7° Festival do Japão em Brasília, inserido no Circuito de Eventos em comemoração aos 110 Anos da Imigração Japonesa no Brasil. O evento, que reuniu entusiastas e praticantes das artes marciais nipônicas, contou com a ilustre presença do Embaixador do Japão no Brasil, Sr. Akira Yamada. Essa foi uma oportunidade inestimável para apresentar o legado técnico e filosófico do estilo a um público mais amplo, reafirmando a relevância da linhagem dentro do cenário marcial contemporâneo.
Outro momento de grande relevância foi a celebração dos 62 anos de ensino do Aizu Ryū no Brasil e dos 20 anos de ensino em Goiânia. A festividade foi um verdadeiro tributo à cultura nipônica, englobando demonstrações de artes marciais, exposições fotográficas, apresentações culturais, exibição do acervo de armas da escola e a presença de escolas irmãs. O evento proporcionou aos participantes a experiência de um intercâmbio técnico e cultural, fortalecendo os laços entre as diversas vertentes do Budō no Brasil. Além disso, o Aizu Ryū esteve presente no Enbu Rensei Tai Kai, um dos eventos mais prestigiados no contexto das artes marciais tradicionais japonesas, organizado pela Kokusai Nihon Bujutsu Kenshūsho Sō Honbu. Esse evento foi um espaço de troca entre escolas tradicionais, reafirmando o compromisso do Aizu Ryū - Misawa-ha com a excelência técnica e a preservação da herança marcial japonesa.
Outro momento de suma importância para a linhagem foi a autorização de transmissão (Jūkō Shōmei no Kan – 巻講証明之巻) do Mondo Ryū Heiho.
Esse estilo, estabelecido no final do século XV, teve sua legitimidade reconhecida e concedida pelas mãos de Daijūgo (第十五家第十五) - Sōke Yokoyama Masashi ao mestre Kenjirō Misawa. Esse reconhecimento reforça a posição do Aizu Ryū dentro do universo dos Koryū Bujutsu e legitima a continuidade de sua transmissão em solo brasileiro.
Em dezembro de 2018, tivemos a honra de receber os mestres Marcelo Haafeld e Adriano Pereira, do Shintō Ryū Tsukimoto-ha, para a realização do 2° Seminário de Kenbu e Shibu. Esse evento consolidou o intercâmbio entre tradições marciais e possibilitou o aprofundamento nas respectivas artes, trazendo aos participantes uma nova dimensão do treinamento marcial e sua conexão com a cultura clássica japonesa.
Nos anos seguintes, o Aizu Ryū seguiu seu curso de crescimento e afirmação no cenário das artes marciais tradicionais. Um dos momentos mais significativos foi o exame de graduação de Alex Katsu Sapiência (勝), cujo desempenho exemplar o levou a receber não só o grau de Chūden (中伝), como a respectiva licença parcial de ensino Menkyo (免許) no anos seguintes: um marco de reconhecimento técnico e filosófico dentro da hierarquia da escola, sendo o primeiro aluno a se graduar fora do regime estritamente familiar e dentro da metodologia de transmissão desenvolvida por Kenjiro Sensei-Sama.
Com a crescente adesão de novos praticantes e a necessidade de expandir os locais de ensino, foram fundados três novos Shibu Gakkō (支部学校) nas cidades goianas de Rio Verde, Anápolis e na região norte de Goiânia. Essas unidades passaram a desempenhar um papel crucial na disseminação do estilo, tornando-o acessível a um número maior de interessados e garantindo a continuidade do treinamento dentro dos padrões estabelecidos pela linhagem Misawa-ha.
O ano de 2024 o Aizu Honbu Gakko sediou exposição “Ichi-go Ichi-e: Entre a Tela e a Espada”. Inspirado na tradição do Chanoyu (茶の湯) e na prática do Aizu Ryū, o projeto do artista visual Rafael Seyki Abdala combinou pintura, instalação e performance, onde gestos marciais e expressões artísticas se entrelaçaram. Sob a supervisão técnica do estilo, foram desenvolvidos estudos e experimentações que uniram técnicas tradicionais e contemporâneas. O resultado pôde ser apreciado em telas imersivas, criadas por cortes de Nihontō (日本刀), cada um carregando força, ângulo e intenção irrepetíveis. Além da exposição, o Aizu Honbu Gakkō ofereceu oficinas para que o público vivenciasse essa filosofia na prática. Mais do que uma mostra de arte, o evento convidou à reflexão sobre a singularidade de cada instante, tornando cada interação uma experiência única e transformadora.
Por fim, no ano de 2025 tivemos um dos momentos mais significativos de nossa história recente: além do exame de graduação de novos Chuden – que agora se preparam para os ciclos subsequentes para a condição de instrutores – o Sensei Cleriston Goeihashi Valadão se gradua Okuden. É o primeiro mestre de Aizu Muso Ryu a se graduar fora de uma transmissão diretamente nipônica, sendo instruído inteiramente por Kenjiro Misawa Sensei-Sama – que a seu turno se eleva agora à condição plena de Meikyo Kaiden (equivalente a Grão-Mestre).
Olhando para o presente, fica evidente que o Aizu Muso Ryu se consolidou não apenas como uma escola de artes marciais, mas como um centro de estudo e preservação de uma tradição secular. Com o compromisso de seus praticantes e o esforço contínuo de seus mestres, a arte segue viva, crescendo e se fortalecendo para as futuras gerações. A transmissão do estilo, ainda que adaptada didática e pedagogicamente aos tempos atuais, preserva com rigor o legado dos antigos samurais da região de Aizu. Sua fidelidade técnica mantém sua identidade como um verdadeiro estilo tradicional, respeitando os ensinamentos e a essência marcial transmitida ao longo das gerações.
Kenjirō Sensei-Sama acolhe com entusiasmo todos aqueles que se interessam pela riqueza e integridade da cultura samurai. Por meio da transmissão diária e da vivência dos princípios de um Koyu Bujutsu, o estilo se mantém vivo na tradição desses guerreiros, trazendo para o presente os valores de humildade, honra e lealdade que os caracterizaram.
A trajetória do Aizu Musō Ryū – Misawa-ha no Brasil reflete os desafios e as conquistas de uma tradição marcial ao ser transplantada para um novo contexto cultural. O equilíbrio entre preservação e adaptação sempre foi um dilema essencial às artes marciais japonesas, e a jornada de Kenjirō Sensei-Sama demonstra que é possível honrar o passado enquanto se constrói um futuro. O reconhecimento internacional da escola e sua crescente influência na América Latina reafirmam a vitalidade do Aizu Musō Ryū. Seu legado permanece sólido, conectando gerações e garantindo que os ensinamentos dos antigos samurais continuem a inspirar e a moldar novos praticantes no caminho do guerreiro.
A transmissão deste saber é um ato de preservação e renovação. Realiza-se de forma dinâmica e segura, mas sem jamais ceder à tentação do efêmero. É um diálogo silencioso entre gerações, onde o conhecimento milenar é passado adiante não como um fóssil inerte, mas como uma semente viva. O objetivo último é zelar por esse legado intangível com a mesma disciplina e o mesmo rigor que moldavam os treinamentos dos antigos samurais. É um resgate consciente, um ato de resistência cultural que busca, nas dobras do gesto preciso e na postura correta, reacender a chama de uma tradição. Dessa forma, a escola não apenas honra o passado, mas cumpre seu dever sagrado de levar esses valores atemporais à comunidade, oferecendo um porto de serenidade, foco e integridade em um mundo de incertezas. É o espírito do guerreiro renascendo, não para a batalha, mas para a edificação de uma vida mais significativa.
Diego Komori Moraes ( 古守博士 )
Historiador, Filósofo e Psicanalista. Doutor (Ph.D) em História da imigração japonesa no Brasil (PPGH - UFG) com a tese intitulada “O Martírio no Sol Poente: das agruras (e)(i)migratórias à formação de milícias ultranacionalistas no contexto do pós-guerra no Brasil – o caso Shindo-Renmei (1868 – 1956)”.





